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Cruzeiro do Forte: 95 anos de tradição, resistência e protagonismo feminino no Maracatu Rural.


Amanda Breckenfeld Fragoso da Silva

Maciel Edvaldo de Lima Silva                                                                                                        Gabriel Melo Lopes de Sousa                                                                                                              Taynã Fortunato da Silva



Instrumentistas em apresentação durante a gravação do CD do lançado em 2014.


No coração do bairro dos Torrões, em Recife, pulsa a história de um dos mais emblemáticos maracatus rurais de Pernambuco: o Cruzeiro do Forte. Fundado em 1929, esse grupo é um testemunho vivo de resistência cultural, coletividade e memória. Sua trajetória, marcada por desafios e conquistas, revela como uma tradição pode se renovar sem perder suas raízes. Hoje, sob a liderança de Dona Ceça, o Cruzeiro do Forte representa não apenas a força da cultura popular, mas também o protagonismo feminino em espaços historicamente dominados por homens.


Tradição que nasce da coletividade


A história do Cruzeiro do Forte começa com a brincadeira de trabalhadores ao redor de uma cacimba, onde hoje é a Praça do Forte. Naquela época, buscar água fazia parte da rotina, e a cacimba se tornava um espaço de convivência. A partir dessa simplicidade, nasceu uma tradição que carrega, até hoje, a essência do maracatu rural: a coletividade.

Criado com instrumentos improvisados, como latas, pás e enxadas, o Cruzeiro do Forte cresceu e se consolidou como uma referência cultural. Mas sua história não foi feita sem desafios, principalmente financeiros e organizacionais. Segundo Dona Ceça: 


“Aqui a gente brinca por amor, somente o mestre, o contramestre e os músicos de sopro que a gente paga. Agora, se a gente for campeão, todo mundo ganha. A gente já ganhou dez anos seguidos” .


Flabelo do ano de 2009, na sede do Maracatu, no bairro dos Torrões.


O protagonismo feminino que fez história.


      Embora o maracatu rural tenha sido, por muito tempo, um espaço liderado por homens, o Cruzeiro do Forte se destacou pela atuação de mulheres em sua gestão. Em 1980, Dona Ionete Maria da Silva, mãe de Dona Ceça, assumiu a presidência do grupo, tornando-se a única mulher à frente de um maracatu rural no estado daquela época.

Dona Ionete liderou o Cruzeiro do Forte por 21 anos, até seu falecimento em 2001. Antes de partir, ela passou a missão para sua filha, Dona Ceça, que, mesmo com outros planos para a vida, assumiu o compromisso de preservação e transformar o grupo. “Muita coisa começa a mudar” , relembra Dona Ceça. Ela conta que, após assumir a presidência, concentrou as apresentações no Recife, investiu nos trajes das baianas e caboclos de lançamento, e levou o grupo a conquistas vitórias inéditas no Carnaval.


Tradição viva: o canto das baianas e a força da coletividade.


Uma das práticas mais marcantes do Cruzeiro do Forte é o canto das baianas, liderado por Dona Neta, uma guardiã da tradição que participa do grupo desde a infância. Aos 86 anos, ela mantém vivas as memórias e os cantos que conectam o grupo às suas raízes. Seu canto transmitiu músicas antigas, que carregam elementos da religiosidade de jurema. Sobre esse diferencial, Dona Ceça comenta: 


“Ela quem canta, essas são todas cantadas por ela e a gente responde. As meninas adoram, mais do que quando o mestre canta. [...] E tem umas macumbas que ela canta, que isso aqui fica tudo cheio (apontando para a rua em frente à sua casa)” .


Esse canto, que combina espiritualidade e tradição, diferencia o Cruzeiro do Forte de outras agremiações de maracatu rural. As toadas puxadas por Dona Neta carregam significados profundos, reforçando a conexão entre a cultura popular e a religiosidade afro-brasileira. 

       A tradição passada por Dona Neta, enfrenta limitações impostas por editais e regulamentações de competições. Por não ser considerado específico dentro do formato tradicional do maracatu rural de baque solto, muitas vezes precisa ser excluído dos desfiles oficiais. Apesar disso, o canto segue cativando o público nas apresentações informais e é um símbolo da força do Cruzeiro do Forte.


Dona Neta, durante a gravação do CD do lançado em 2014.


Desafios na manutenção da tradição.


Preservar uma tradição tão rica exige uma manutenção significativa para enfrentar desafios financeiros e sociais. Dona Ceça compartilha episódios que revelam as dificuldades de manter o grupo ativo, especialmente em um contexto de apoio limitado. 


“Uma vez a gente foi se apresentar na cidade de Itapissuma, dois ônibus, o cara cobrou a gente R$ 600,00 cada ânibus. Quando pegamos o dinheiro da apresentação, só deu para pagar os motoristas”.


Além das questões financeiras que o Cruzeiro do Forte enfrenta, há também uma forte pressão cultural e religiosa que impacta diretamente a preservação e a prática do maracatu. Dona Ceça, à frente do grupo, compartilha as dificuldades de conciliar a tradição com as mudanças e pressões externas que vêm com a modernização e as novas dinâmicas sociais.

Ela relata como, muitas vezes, precisa adotar práticas para evitar críticas ou preconceitos, especialmente de grupos religiosos que não compreendem ou não aceitam a religiosidade ligada ao maracatu. 


“As meninas que vêm fazer o culto aqui uma vez na semana me chamam até de pastora. Estão querendo que eu entre pra igreja pra acabar com o maracatu”


Ela desabafa, evidenciando o impacto das pressões externas sobre as manifestações culturais afro-brasileiras.


Essa pressão revela um conflito entre a preservação das tradições culturais e o desejo de integração em uma sociedade marcada por valores religiosos hegemônicos. A religiosidade ligada ao maracatu, que envolve rituais afro-brasileiros, é constantemente alvo de incompreensão e até hostilidade, especialmente em comunidades mais conservadoras. Apesar dessa resistência, Dona Ceça mantém sua convicção de que o maracatu é uma expressão legítima da identidade cultural e religiosa da comunidade.


O fato de ela abrir sua casa para cultos evangélicos, buscando conciliar diferentes visões, é uma tentativa de diálogo, mostra também um reflexo das tensões que surgem quando tradições culturais se confrontam com novas práticas religiosas. O desejo de “acabar com o maracatu” é uma pressão constante que, de alguma forma, tenta apagar ou reduzir a visibilidade de práticas culturais que desafiam a homogeneização religiosa.


Essa resistência cultural e religiosa se torna um dos muitos desafios enfrentados pelo Cruzeiro do Forte. Porém, mesmo diante dessas adversidades, o grupo segue firme, mostrando que a cultura popular tem a força necessária para resistir a essas pressões externas, e que as tradições afro-brasileiras precisam ser preservadas e respeitadas como um direito cultural legítimo.


Corte do maracatu em uma das apresentações.


Legado e impacto: O que o Cruzeiro do Forte nos ensina


O Cruzeiro do Forte não é apenas um grupo cultural; é também um símbolo de resistência e um espaço fundamental de aprendizado e fortalecimento comunitário. Ao longo de suas quase nove décadas de história, o grupo tem sido um ponto de convergência para a preservação de práticas culturais e para a construção de identidade dentro da comunidade. Ele conecta gerações, criando uma ponte entre o passado e o futuro, e resgata memórias que são fundamentais para a compreensão da história de Pernambuco, sobretudo no bairro dos Torrões e das comunidades afro-brasileiras.


Através de sua atuação, o Cruzeiro do Forte reforça a importância da cultura popular como uma poderosa ferramenta de transformação social. Em tempos de globalização e homogeneização cultural, onde as tradições muitas vezes são subjugadas, o grupo se mantém firme como um território de resistência. Suas práticas, que envolvem música, dança, religiosidade aliadas à coletividade, oferecem uma forma de resistência cultural que vai além das apresentações de carnaval. Elas são também um espaço de afirmação de identidade, onde as pessoas podem reafirmar seus valores, suas histórias e seu pertencimento.


A força do Cruzeiro do Forte não está apenas em sua história, mas na maneira como ele continua a inspirar as novas gerações. Os jovens brincantes do maracatu aprendem não só as técnicas tradicionais, mas também os valores de coletividade e resistência que são essenciais para a continuidade da tradição. O grupo continua a mostrar que, ao mesmo tempo em que as tradições podem e devem se adaptar aos novos tempos, elas não precisam perder sua essência.



 
 
 

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