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A memória e a territorialidade na Ilha de Deus em Recife - PE.

Atualizado: 24 de fev. de 2021

Por Daniel Lamir; Heloísa Bispo; Jaqueline Soares;

Luana Moraes; Nathália Vieira; Thiago Clark.


1. Objetivos e desenvolvimento da pesquisa em campo:

Iniciamos a disciplina de Movimentos Sociais, dentro do Programa de Educação, Culturas e Identidades no semestre 2019.2 com uma metodologia diferenciada. Esperávamos realizar uma disciplina de base teórica, mas no primeiro momento fomos divididos em grupos para realizar pesquisas de Campo, aliando a teoria sobre os movimentos sociais e como estes movimentos atuam na prática no seu território. O tema que nos uniu foi a utilização da memória como estratégia de resistência identidade para os movimentos sociais, e de acordo com as nossas demandas e vivências optamos por realizar o nosso trabalho no território da Ilha de Deus. É importante ressaltar que inicialmente pensávamos em desenvolver a atividade com três comunidades, mas nos deparamos com a disponibilidade do campo e a realidade do tempo de desenvolvimento, o que resultou na preferência da comunidade Ilha de Deus. O objetivo geral do nosso trabalho foi identificar como a memória é um elemento importante para a mobilização social, principalmente para os grupos e comunidades tradicionais.

Estivemos presentes na comunidade da Ilha de Deus em duas oportunidades distintas. No primeiro momento, íamos conversar com a instituição Saber Viver mas, diante da indisponibilidade do nosso contato e também contando com o acaso, fomos até a sede da instituição Caranguejo Uçá. Lá encontramos o jornalista e representante comunitário, Edson Fly. Durante 2 horas conversamos sobre a história da organização e de como o movimento social se organizou na ilha. Neste dia também conversamos com a instituição Saber Viver, porém depois de uma reunião interna com o nosso grupo, optamos por fazer um segundo encontro na organização Caranguejo Uçá e neste momento aplicamos um questionário com Edson Fly e o convidamos para a nossa realização de uma roda de diálogos dentro do nosso programa, onde o mesmo poderia sintetizar a história do movimento que estava inserido e de como está se relaciona com as pautas atuais como o desastre do óleo encontrado na orla nordestina nos últimos meses de 2019.

2. As experiências com o campo:

Baseados nas experiências metodológicas do campo exploratório propusemos lançar um olhar etnográfico sobre o território visitado, apesar da breve visita, a experiência permitiu que uma complexa teia de relações comunitárias e visões de governança fossem observadas. Antes de adentrarmos nas características do “vivido” acreditamos ser fundamental entender o espaço físico e os recursos disponíveis para o desenvolvimento social desta comunidade.


Imagem 01: A Ilha de Deus ao centro , os viveiros de camarão, e o manguezal ; à direita: ponte das Mulheres ligando a Ilha a Vila da Imbiribeira; ao fundo: prédios da orla do Pina e Boa Viagem. Fonte: site Catamarã Tours.


A Ilha de Deus está localizada em um grande remanescente de manguezal do Pina, na cidade do Recife (PE). A sua volta estão os rios Pina, Jordão e Tejipió. Os manguezais são conhecidos como berçários e refúgio de espécies de fauna dos ecossistemas estuarinos e costeiros, sendo assim também uma fonte riquíssima de sobrevivência para a comunidade que dele extrai os recursos para subsistência e para venda.

A Ilha de Deus, como ressaltado por um de nossos entrevistados, faz parte do território pesqueiro do Recife e é responsável por atender a demanda de matéria-prima das redes gastronômicas da cidade com sururus, unhas de velho, camarões (Imagem 1) e pescados variados.

A ilha é cercada por água, mangue e as pilhas de “cascas” dos moluscos que são extraídos, limpos, secos e separados (Imagem 2 e 3) continuamente por diversos moradores tanto homens quanto mulheres e algumas crianças que acompanham de perto o trabalho dos mais velhos.

Imagem 02: Pilhas de restos do sururu e conchas.


Imagem 03: Homem e meninos realizando a coleta de sururu

Enquanto percorríamos a ilha, guiados por uma simpática menina de patins, foi possível notar a diferença com a relação temporal. O tempo da e na Ilha pareceu correr mais sereno, conforme a velocidade de um rio percorrendo a planície até encontrar o mar.

Apesar da rádio comunitária estar transmitindo sua programação desde antes do horário que chegamos, havia também um silêncio, uma calmaria. Era uma manhã de sexta-feira (13 de setembro de 2019), não havia muitos transeuntes, e alguns espaços que esperávamos encontrar abertos, não estavam.

Diante do imprevisível que a pesquisa de campo nos expõe fomos levados a entrar em uma porta não planejada e encontrar FLY e a Ação Comunitária Caranguejo Uçá - ACCU (Imagem 4). Após uma breve apresentação de quem éramos e qual era o nosso propósito alí, o protagonista deste dia logo mostra suas habilidades de comunicar, liderar (apesar de não se apresentar enquanto líder) e de educar criticamente a partir de uma visão de mundo forjada pela necessidade de mudança de uma realidade difícil e pela utopia encontrada nos ensinos de Paulo Freire.


Imagem 4: o grupo de pesquisa junto ao entrevistado Fly em espaço da ACCU.


Lançamos mão de uma escuta sensível à narrativa que Fly encadeou, fizemos algumas perguntas que perpassaram as temáticas da memória, da tradição, do território, mas não seguimos o roteiro pré-estabelecido, seguimo mais em uma conversa amistosa do que em uma entrevista para coleta de dados, o que trouxe uma riqueza e complexidade para este estudo. E foi determinante para reformularmos a proposta inicial de nosso grupo focal, reiterando a já consagrada espiral de reflexão-ação dos estudos participativos.

Após entrevistarmos Fly, fomos em busca de Nalvinha da Organização não-governamental Saber Viver, e sendo esse encontro o que planejávamos inicialmente, voltamos ao uso do roteiro semiestruturado, que foi sendo preenchido conforme a própria entrevistada ia narrando a história da Ilha de Deus, o surgimento daquele movimento social e a sua relação com o território.

Ao voltarmos do campo deu-se o processo de reflexão sobre tudo que esperávamos encontrar e sobre o que a realidade nos devolveu. Assim, escolhemos trabalhar com a ACCU e voltamos a campo no dia 16 de outubro de 2019 para realizar uma entrevista mais direcionada, sendo gravada e posteriormente transcrita para compor os dados desta pesquisa inicial.


Roda de diálogos - 30 de outubro de 2019


Imagem 5: Registro da Roda de diálogos com Fly em 30 de outubro de 2019.


Realizamos a roda de diálogos, na Fundação Joaquim Nabuco de Apipucos, intitulada: Memória e resistência em rede: experiência da Comunidade Pesqueira da Ilha de Deus em tempos de crise ambiental. Fly, nosso convidado como representante da Ação Comunitária Caranguejo Uçá, dissertou sobre a história da Ilha de Deus e a relação com a Caranguejo Uçá (imagem 5).

Conforme nos contou Fly, a Ilha de Deus se constituiu enquanto comunidade a partir dos anos 1970, antes desse período a Ilha Pesqueira não possuía moradores fixos, apenas os pescadores que ali estavam de passagem.

Já na década de 80 o território perpassa seu primeiro marco histórico, quando o Governo de Pernambuco permitiu que as fábricas e usinas depositassem seus rejeitos em rios e mares do Recife, provocando uma situação alarmante para aquela comunidade que se subsidiava através da pesca. Esse período propiciou um contexto de articulação com comunidades vizinhas para uma organização política e social de reivindicações, que se estendeu até a primeira metade dos anos 1990.

Com os anos 2000, o projeto de urbanização chega à Ilha, evitando a propagação das palafitas, organizando as moradias na planície do território. Nesse mesmo momento de transformação, alguns jovens moradores decidem ampliar seus saberes e mergulhar em outros espaços de construção de conhecimentos. Esses mesmos jovens protagonizam projetos sociais e artísticos na Ilha, sendo um deles, Edson Fly.

Durante a roda de diálogos também pudemos ouvir de Fly algumas críticas a falta de entendimento de moradoras e moradores da Cidade do Recife como um todo de que somos território pesqueiro, acarretando na falta de apropriação da população da condição de nossos rios e mares, que possuem seus estuários poluídos com diversos componentes químicos pesados. Para Fly, a falta da relação da cidade com nossas águas provocou uma piora gradativa desses territórios litorâneos, sendo atualmente falado devido à crise do derramamento de óleo que atingiu o litoral Nordestino.


3. Os limites e aproximações na discussão teórica:

Em seu texto, Movimento Sociais na contemporaneidade, Maria da Glória Gohn (2011) diz que há um caráter educativo nas práticas que se desenrolam no ato de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como para sociedade mais geral e também para os órgãos públicos. Entendendo educação numa visão mais ampla, não formal, formal, informal. Ao fazer um paralelo com o trabalho desenvolvido pelo Caranguejo Uçá, se percebe o caráter educativo das suas ações, que também estimulam a participação comunitária, a exemplo: as rodas de diálogos e os programas da rádio comunitária Boca da Ilha. Na visita de campo à instituição foi perceptível a relação de interação com a comunidade, de como o espaço está aberto para seu território.

Ainda sobre o texto de Gohn, a autora faz o que chama de uma visão panorâmica dos movimentos sociais latino-americanos na contemporaneidade e fala sobre um novo momento na trajetória do associativismo, sobretudo no Brasil, onde a ampliação do cenário associativo vai além da sociedade civil, adentrando novas esferas públicas, conselhos e conferências, e cita novos conceitos como: desenvolvimento sustentável, empoderamento, economia social. Aborda também o cenário contraditório em que convivem as entidades e conclui afirmando que como meta geral é preciso alterar a cultura política de nossa sociedade civil e política, muito marcada ainda pelo clientelismo, fisiologismo e por diversas formas de corrupção, fazendo assim uma crítica ao modo de administração de nossos órgãos públicos, burocráticos e corporativistas, e aponta o compromisso ético e o desenvolvimento de propostas que tenham como base a participação social pelo protagonismo da sociedade civil, com a participação cidadã, dando forma a garantia dos direitos humanos.

O representante da Caranguejo Uçá, Edson Fly, faz um resgate da história da comunidade Ilha de Deus, da sua formação e organização, dos primeiros movimentos sociais, em especial o de mulheres, cita a ONG Saber Viver como organização mais antiga, faz também algumas ressalvas ao modelo atual de gestão dessa organização. Ainda em seu discurso Fly aborda a relação de distanciamento da Caranguejo Uçá com as ações do poder público, acrescentando que é um posicionamento político da organização que não compactua com a forma de gestão.

Compreendendo as noções de território e memória, é relevante pontuar a fala de Edson Fly quando afirma que não é a Ilha de Deus que é um território pesqueiro e sim a cidade do Recife, atribuindo um resgate histórico da atividade da pesca na cidade, e de como essa atividade vem sendo apagada e esquecida. Esta fala feita primeiramente na visita de campo, foi repetida na roda de diálogos, onde foi também acrescentando os desafios da comunidade em manter sua vocação pesqueira diante do cenário atual de crime ambiental, derramamento de óleo, falta de incentivo/ações das gestões públicas, inclusive, no mesmo 30 de outubro, Fly havia participado de uma audiência pública na Assembleia Legislativa para discutir sobre o derramamento do óleo na costa pernambucana. Analisando nosso debate em sala de aula e nossas idas à campo, tangenciando as temáticas da memória e da territorialidade, pudemos discutir como a memória resgatada dá sentido às lutas presentes, criam identidades e representações simbólicas afirmativas. E que o conceito de territorialidade vai além de uma análise espacial, envolvendo questões como fortalecimento de identidade coletivas e de pertencimento social.


Referências

GOHN, Maria da Glória. Movimentos Sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação, v.16 n. 47, maio-ago. 2011.

LAGE, Allene. Orientações epistemológicas para a pesquisa qualitativa em educação e movimentos sociais. In: Anais do Colóquio Internacional de Políticas e Práticas Curriculares: Diferenças nas Políticas de Currículo: João Pessoa - PB: UFPB, 2009.

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