Horta 'Mãos de Milagres': a terra que cura
- anamariasfigg
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No meio da Comunidade dos Milagres, no bairro do Ibura, em Recife, há um pequeno terreno que ressignifica narrativas. É dessa ressignificação que fala Taciana França, idealizadora do projeto: “Milagres não é só bandido, Milagres não é só carência, não é só favela. Milagres tem muita potência [...]” Onde muitas pessoas veem apenas "área de risco" em notícias de jornal, um grupo de mulheres negras, moradoras da comunidade, cultiva muito mais do que hortaliças. Elas cultivam cura, autoestima, vínculos afetivos, constroem famílias para além dos laços sanguíneos e um projeto potente de um futuro cheio de esperanças.
Com os corpos marcados pela violência que as atravessa pelo gênero, raça e classe, as mulheres dos Milagres trazem sabedoria ancestral entre uma cicatriz e outra. Umas com as famílias destroçadas pela violência climática, outras pela violência policial e do tráfico, outras marcadas pelo abuso infantil e conjugal. As mãos cansadas que roçam a horta não discriminam quem quer que chegue. Dentro da horta, há apenas cuidado.
O Coletivo Mãos de Milagres e sua horta comunitária são um portal de transformações. Quem visita a horta sai com a sensação de estar no “vilarejo” cantado por Marisa Monte, onde vamos para “acalmar o coração”. Lá, tudo parece fazer sentido, tal qual no vilarejo utópico desejado pela cantora, uma terra de heróis, lares de mãe e onde o paraíso parece ter se mudado para lá.
O coletivo se organiza de forma horizontal, sem liderança específica. Apesar disso, Taciana, se coloca como porta-voz eloquente em diversas situações com apoio de suas companheiras. Ela resume a jornada pessoal que se tornou coletiva:
“Eu tive que aprender a me amar para ensinar outras pessoas negras a também se amarem, outras mulheres negras a também se amarem” (Taciana França).
Ao falar sobre suas vivências pessoais e as do coletivo, podemos encontrar semelhanças com os textos de Nego Bisbo, Lélia Gonzales, Bell Hooks, dentre outras fontes que falam sobre aquilombamento, cultura do cuidado e o Bem Viver da cultura Guarani.
O que à primeira visita não revela de imediato, mas que se torna evidente a cada retorno, é que a horta funciona como uma espécie de arquivo vivo: um lugar onde histórias que antes existiam apenas em silêncio começam a ganhar voz. Cada canteiro guarda a lembrança de quem o plantou, de quem o regou em dias de sol forte, de quem encontrou ali um motivo para continuar. A terra, antes dura, agora devolve não apenas alimento, mas também a possibilidade de reorganizar aquilo que a vida havia espalhado pelo caminho.

Para os olhos mercantilistas, sedentos por transformar tudo em oportunidade financeira, a horta traz muitas possibilidades de empreender, mas para os olhos que tanto já choraram e ainda choram pelo descaso sofrido, aquele lugar não é, essencialmente, sobre isso - é sobre comunidade. É a única forma que grande parte delas tem de sair do convívio e obrigações familiares para estar com pessoas de outras idades, com saberes distintos dos próprios e onde podem pedir acolhimento para lidar com as dificuldades de saúde mental que aflige fortemente as pessoas daquela região.
Mais do que um espaço de cultivo, a horta se torna um território de aprendizagem coletiva. Taciana revela a colheita invisível:
“Não é só plantar, não é só colher, não é só semear pra botar no prato depois, sabe? É terapêutico, é justiça social também” (Taciana França).

Lá, o tempo tem outra lógica, não a urgência da sobrevivência, mas o ritmo paciente do cuidado. As mulheres aprendem juntas a esperar, a observar, a confiar no que cresce sem pressa. E, nesse processo, vão descobrindo maneiras de se fortalecer mutuamente: trocam receitas, trocam saberes, trocam conselhos, trocam vidas. A terra vira mestra, e elas, discípulas e guardiãs de si.
Poder semear e colher em um local onde deslizamentos de barreiras já destruíram famílias inteiras e instaura o pânico a cada dia de chuva, não apenas ensina sobre cuidado mútuo, como também é uma importante ferramenta de educação ambiental. Em um mundo tão hostil para mulheres, especialmente as negras, um espaço de convivência como a Horta dos Milagres combate o feminicídio de formas que o Estado jamais poderia.
O trabalho cotidiano também revela um gesto profundamente político. Em uma cidade que tantas vezes nega às mulheres negras o direito ao descanso, ao prazer, ao lazer e à própria humanidade, a horta cria um pequeno território onde elas podem existir sem pedir licença. Ali, elas escolhem o que plantar, como organizar os espaços, como dividir o que colhem. É autonomia brotando na prática, não como conceito, mas como vivência diária. E talvez seja isso que torna o Coletivo Mãos de Milagres tão único: a sua capacidade de transformar um terreno comum em um espaço de reinvenção. A cada dia, elas mostram que resistência também pode ser leveza; que cuidado também é política; que afeto também muda estruturas.

No Ibura, onde tantas narrativas são marcadas pela falta, pela ausência e pela urgência, essas mulheres criam uma outra gramática da vida, em que crescer, florescer e pertencer são verbos possíveis.
Esse texto, assim como a Horta, foi construído por muitas mãos de milagres: Taciana França em conjunto com as demais integrantes da Horta, e estudantes do Programa de Pós Graduação em Educação, Culturas e Identidades: Ana Paula, Ana Maria Figueiredo, Bárbara Renata Cavalcante Ferro de Melo, Daniela Falcone, Damaris Souza e Jéssica de Oliveira.



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