Processos de resistência dos Movimentos de Cultura Popular da Cidade do Recife em Tempos de Pandemia
- elisadn98
- 28 de nov. de 2021
- 20 min de leitura
Amanda de Souza
Elisa Duarte Nascimento
Inaê Veríssimo do Nascimento
Jailton Ferreira de Oliveira Júnior
RESUMO
Este trabalho apresenta-se como um Estudo de Caso (YIN, 2005) dos processos de reinvenção de coletivos de Cultura Popular da cidade do Recife-PE durante o período da Pandemia de COVID-19. A partir da experiência dos coletivos populares recifenses Caboclinho Sete Flexas e Maracatu Nação Raízes de Pai Adão podemos compreender os processos de resistências e reestruturação dos movimentos artístico-culturais populares recifenses para superar as dificuldades impostas pela pandemia. Assim, comparando suas experiências podemos ter um entendimento geral das medidas que foram estabelecidas por esses coletivos para dar continuidade a suas atividades durante os anos de 2020 e 2021.
PALAVRAS-CHAVE
Cultura Popular. Pandemia. Práticas Culturais. Movimentos Culturais.

Introdução
No dia 30 de janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou que o surto de contaminação pelo coronavírus se caracterizava enquanto uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), em 11 de março do mesmo ano a doença passa a ser considerada uma pandemia mundial. A essa altura o vírus já se espalhava largamente em diversos países do globo e causava um número cada vez maior de mortes dia após dia. No Brasil, o primeiro caso registrado da doença ocorreu no estado de São Paulo, em fevereiro de 2020, e logo a doença se espalhou pelo país, assim, foram colocadas em práticas medidas que buscavam controlar o vírus, como distanciamento social, uso de máscaras, atenção especial à higiene e, sobretudo, a implantação do chamado lockdown - isolamento mais rígido entre a população.
O cenário alarmante de número de mortes e internamentos diários - chegando a causar colapso no sistema de saúde - é intensificado pela crescente instabilidade política e uma consequente crise econômica resultado do complexo contexto dos últimos anos. A total falta de competência do governo Bolsonaro em lidar com essas questões tomou como resultado o aumento da desigualdade no país, consequência do crescimento do desemprego, da pobreza e da fome.
Na cidade de Recife, campo desta pesquisa, medidas restritivas passaram a ser tomadas a partir de março de 2020, quando é decretado estado de calamidade pública, em maio são sistematizadas as medidas restritivas e foca-se no isolamento social. Em dezembro daquele ano, visando a aproximação das festividades de fim de ano, tem-se o decreto Nº 49.891 que proibiu shows, festas e similares. Já em outubro de 2021, após mais de um ano e meio de pandemia de COVID-19 e, sobretudo, como resultado do avanço da vacinação contra o vírus no país, tem-se uma flexibilização das restrições ao convívio social e, tem-se por sua vez, as medidas de convivência com o coronavírus. Uma das esferas mais prejudicada neste quadro foi a da cultura.
Desde a Constituição Federal de 1988 é dever do Estado fomentar e proteger o patrimônio cultural brasileiro, reconhecendo o caráter emancipatório da produção cultural e o direito de todo cidadão e de toda cidadã de ter acesso aos meios de produção e recepção da arte e da cultura. Porém, apesar de muito se discutir sobre economia da cultura, políticas culturais, patrimônio e bens/valores culturais, na prática as políticas públicas globais do Brasil têm uma atuação voltada principalmente para as chamadas “leis de incentivo à cultura” ou leis de benefício fiscal, situação que provoca uma dependência da produção cultural aos interesses dos setores de marketing das instituições e empresas, como salienta Botelho (2001).
Os modelos de livre mercado e a omissão dos governos Temer e Bolsonaro ao setor cultural (como a extinção do Ministério de Cultura ou a declarada falta de critérios na nomeação de dirigentes qualificados para a pauta) aceleram o processo de apagamento/esquecimento de determinadas formas de expressão de identidades essencialmente brasileiras. As artes populares sobrevivem graças às movimentações populares, aos mecanismos estaduais pontuais e, principalmente, aos calendários festivos, ou seja, em contexto epidêmico se encontram sem a possibilidade de aglomeração, de juntar pessoas, havendo assim uma desarticulação na base dessas expressões populares.
Muitos coletivos, grupos, instituições, produtoras e artistas investiram nas lives, nas transmissões virtuais, na arte digital ou arte do possível para ressignificar e conseguir continuar suas práticas profissionais. Porém, com a articulação de pessoas e aglomeração como principal característica, será que movimentos artístico-culturais populares recifenses, como o Caboclinho Sete Flexas e Maracatu Nação Raízes de Pai Adão, conseguiram acompanhar as transformações nos contextos de produção e fruição artística impostas pela pandemia?
Com o objetivo de compreender os processos de reestruturação e manutenção dos movimentos populares de cultura da cidade de Recife-PE para a superação das dificuldades impostas pela pandemia, o presente texto desenvolve-se a partir de um estudo de caso na perspectiva de Yin (2005). Dessa forma, tivemos a oportunidade de entender como os grupos populares de cultura em Recife (PE) conseguiram sobreviver aos anos de 2020 e 2021, momento em que os ciclos festivos foram interrompidos em decorrência do isolamento social.
Pretendeu-se ainda constatar o papel do Estado na produção cultural, para tal, recorremos aos documentos oficiais para compreender como foi sua atuação diante do contexto pandêmico e qual sua contribuição para a sobrevivência e proteção dos trabalhadores ligados aos setores e movimentos culturais. Para além disto, através de entrevista semiestruturada, aprofundamos o diálogo com dois movimentos artístico-culturais da cidade do Recife (PE) - Caboclinho Sete Flexas e Maracatu Nação Raízes de Pai Adão - para assim compreendermos melhor o fenômeno estudado.
Por uma reinvenção das práticas culturais em tempos de pandemia
Com base no estudo “Percepção dos Impactos da COVID-19 nos Setores Culturais e Criativos do Brasil” publicada pela UNESCO em 2020, tem-se os dados de 2.667 entrevistados que responderam questões sobre a continuidade de seus trabalhos artísticos durante o primeiro ano da pandemia. Observou-se que 69,4% dos entrevistados atuam como pessoa física, enquanto 30,6% fazem parte de coletivos ou praticam suas atividades enquanto pessoa jurídica, incluindo Microempreendedores Individuais (MEI). O setor com maior participação foi o de artes cênicas com 27,62% das respostas, seguido pelo de música com 18,09% e o de artes visuais e artesanato com 13,84%. Os subsetores com mais artistas atuantes foram: Teatro (19,72%), Filmes, vídeos e demais obras cinematográficas (11,77%), artes plásticas, incluindo pintura, esculturas, etc. (10,1%) e dança (8,53%).
O perfil dos coletivos que responderam a pesquisa é formado majoritariamente por MEI (42,89%) e empresas (37,07%), enquanto os coletivos considerados informais somaram 6,74%. A maioria desses coletivos (62,78%) existem há 5 anos ou mais e 51,81% possuem faturamento mensal entre 1 mil e 6,9 mil reais, sendo a principal fonte de renda receitas de prestação de serviço (55,89%), seguido por editais (15,31%). Durante os meses de maio a julho de 2020 48,8% dos entrevistados perderam a totalidade de suas receitas e a maioria deles (30,6%) presumiam que continuariam assim até pelo menos janeiro de 2021. A maioria destes artistas cortaram completamente suas compras referentes à execução de seus trabalhos, bem como demitiram todos seus colaboradores, pode-se notar, no entanto, que esperavam que em 2021 o trabalho fosse, lentamente, retomado.
Importante trazermos dois outros pontos trazidos neste estudo e que nos é aqui interessante: o papel da internet no prosseguimento do trabalho desses artistas no contexto pandêmico e as fontes de renda neste mesmo contexto. Dos indivíduos ligados a coletivos culturais, 65,97% afirma que seu produto/serviço pode ser parcialmente oferecido por meio digital, 62,6% dos entrevistados afirma que a qualidade da internet em sua reação é de boa qualidade, no entanto, 49,4% afirma que o custo desta internet é alto enquanto 47,4% considera o preço médio ou justo.
Ao tratar das estratégias para o ganho de renda durante o ano de 2020 a maioria (26,54%) dos artistas ligados a coletivos (mas que atuam enquanto MEI) receberam o auxílio emergencial de seiscentos reais. Os editais voltados para o meio artístico e cultural foram utilizados por 18,25% dos entrevistados, enquanto o restante se utilizaram de outros meios como doações, empréstimos bancários, seguro-desemprego e outros. É necessário destacar, no entanto, que o perfil dos entrevistados é predominantemente formado por mulheres brancas com ensino superior completo. A reconfiguração do trabalho para o virtual (também conhecido como teletrabalho ou home office) foi fundamental não só para o setor cultural, mas para vários outros, todavia, refletimos de quem e para quem o formato de trabalho artístico-cultural virtual é acessível?
Ainda no primeiro semestre de 2020 muitos grupos, coletivos e artistas, por necessidade e empenho, lançaram-se às pesquisas artístico-virtuais com as tecnologias disponíveis para criar/refletir nesse - e sobre esse - momento histórico que estamos atravessando. Jorge Dubatti (2020) aponta para o “tecnovívio” como o outro-possível do “convívio” essencial para a cultura convivial, como é o teatro, a dança ou qualquer manifestação de cultura popular. Para Dubatti, cultura convivial é: “uma prática humana territorial de encontro com o corpo presente, no espaço físico, na presença física, na materialidade do espaço físico e com a materialidade do corpo físico vivo” (2020, p.17). Já a cultura tecnovivial é:
[...] a experiência humana à distância, sem a presença física na mesma territorialidade, que permite a subtração da presença do corpo vivo, e a substitui pela presença telemática ou a presença virtual por intermediação tecnológica sem aproximação dos corpos (DUBATTI, 2020, p. 19).
A cultura tecnovivial não é novidade, temos o cinema, o rádio, a televisão, as redes sociais e qualquer outro meio de telecomunicação, mas o hibridismo nos provoca novas inquietações. Dubatti (2020, p.23) distingue as experiências conviviais e tecnoviviais sem uma relação de superioridade/qualidade ou mesmo de evolução, mas sim de diferença. Uma experiência não supre a outra, já que ambas nos proporcionam esteticamente sensações distintas. Para os coletivos e artistas das artes cênicas, essencialmente conviviais, que assumiram o virtual como uma possibilidade de resistir em atividade na pandemia, a experiência cênico-virtual se dá como um outro, uma nova experiência. A exemplo disso, mesmo com muitas lives, espetáculos e até visitas aos museus virtuais, a pandemia nos proporcionou uma quase abstinência coletiva do convívio, da presença e da troca direta.
Para as manifestações artísticas ligados à cultura popular - como as práticas do folguedos, brincadeiras, das festas populares, das danças dramáticas, religiosas e das diferentes formas de expressões populares - a atmosfera convivial entre os participantes e os aspectos relacionais com o espaço da ação é mais que essencial, pois é o motor propulsor de todas as atividades. As manifestações populares enraízam-se nas comunidades locais (CASCUDO, 2004), nas estéticas, nas alegrias, na fé, nos temores, nos sons, nos sabores, nas texturas que nascem e vão para a rua. Suas práticas têm relação direta com as práticas cotidianas das comunidades em que aparecem, possuem aprendizados contínuos que nascem da repetição, na prática tem sempre algo que nasce, algo que morre e algo que renasce (VALLE, 2004). Tem um estado que é manifesto apenas quando os corpos estão juntos, em movimento, no espaço. Não é difícil chegar à conclusão de que para os coletivos e artistas ligados às manifestações populares a “reinvenção” para o virtual torna-se muito mais desafiadora, quando não impossível.
Contudo, o apoio do Estado é fundamental para manter e estimular a produção artístico-cultural que desenvolvemos como comunidade e que nos garantem um senso de identidade e pertencimento. Em meio à pandemia, esse papel foi centrado no auxílio emergencial para os artistas, nomeado como Lei Aldir Blanc (lei nº 14.0175). Tal lei busca viabilizar a distribuição do recurso de R$ 3 bilhões do Fundo Nacional de Cultura (FNC) para o atendimento ao setor cultural do país em três divisões: o auxílio emergencial em três parcelas; subsídio mensal para manutenção de espaços culturais e o lançamento de ações de incentivo à produção cultural - como editais, cursos de qualificação e prêmios.
A Lei Aldir Blanc (LAB) foi uma conquista dos movimentos dos trabalhadores do setor cultural de todo o país, versa sobre um direito constitucional e compromete apenas os recursos que já são destinados para o setor. Aprovada no dia 29 de junho de 2020, o recurso foi repassado da União para o gerenciamento dos Estados, Distrito Federal e Municípios. Já na segunda remessa de editais com o recurso da Lei Aldir Blanc (LAB), a Secretaria Estadual de Cultura (Secult-PE) divulgou no Portal de Cultura PE que contabilizou 10.191 projetos inscritos, número que supera em quatro vezes o total de inscrições de 2020, quando 2.539 propostas artísticas e culturais foram cadastradas. Além dos recursos da LAB, o Governo do Estado de Pernambuco utilizou R$ 3 milhões do Tesouro Estadual para lançar um edital de auxílio emergencial para os coletivos, artistas e agremiações que iriam trabalhar no carnaval de 2021, considerando que a Festa de Momo é o ciclo festivo que mais movimenta o setor cultural em Pernambuco.
Do Entrudo ao Carnaval - O Maracatu e o Caboclinho na periferia da cidade do Recife
Assim como a cidade do Recife tem uma profunda ligação com o nosso passado colonial, possui uma relação semelhante com o carnaval. O chamado Entrudo, trazido pelo colonizador português, se originou a partir dos bacanais gregos e das saturnais romanas, sendo recriado em nosso solo a partir dos contatos interétnicos entre índios, negros e brancos, e se caracterizava por ser um momento de irreverência em que os “populares” atiravam entre si e nos transeuntes toda sorte de coisas que sujassem e molhassem (GOÉS, 2002); o que no nosso tempo conhecemos como “mela mela”. O entrudo era realizado na rua, sendo talvez o único momento em que a população negra escravizada poderia usufruir livremente desse espaço, entretanto, com o desenvolvimento de um ideal urbanístico modernizador, a transformação e modernização das ruas também pedia que uma limpeza étnica fosse feita, sendo o entrudo banido, a população negra foi proibida de comemorar o “carnaval” (SILVA, 2016).
A retomada do entrudo se deu com a brincadeira sendo realizada dentro dos sobrados das classes abastadas. A volta para as ruas ainda tardou, pois novas configurações da festa foram acontecendo, de maneira que se alinhassem ao ideal de limpeza vigente. Os bailes de máscaras foram fundados aproximadamente no início dos anos 40 do séc. XIX para substituir o “mela mela”, ocupar o espaço da rua para este fim não era algo visto com bons olhos pela sociedade conservadora da época. Além dos bailes de máscaras outras formas de “brincar” o carnaval surgem: os “clubes de alegoria e crítica” e os “clubes de pedestres”; o primeiro tem em sua marca a saída dos mascarados de dentro dos clubes para a rua; o segundo tem relações com a abolição da escravatura e com a reivindicação das camadas marginalizadas ao direito de ocupar as ruas, tendo sua maior expressão na virada do século XX (SILVA, 2016), talvez essa seja uma das razões pelas quais as manifestações de base popular tem estreita ligação com a ocupação do espaço urbano. Ainda mais antiga que a origem dos maracatus como agremiações carnavalescas, aos “Caboclinhos” é atribuído o estatuto de manifestação mais remota, tendo sua origem associada aos Autos de catequese dos jesuítas:
Enquanto o maracatu é uma manifestação de origem africana, os Caboclinhos são uma representação dos povos indígenas. Trata-se de um grupo de homens e mulheres, com cocares de penas de ema, pavão e avestruz. São caboclos que evoluem nas ruas em duas filas, ao som dos estalidos secos das preacas _ um objeto que reproduz o arco e flecha e que emite um estalido quando percutido. É um dos mais antigos bailados populares do Brasil. Alguns estudiosos atribuem o surgimento da manifestação na forma de Auto elaborado pelos jesuítas para a catequese dos índios pernambucanos. Estes grupos preservaram passos e danças nativas que se somaram às influências européias e negras. Os personagens dos caboclinhos são o cacique e sua mulher, o capitão e o tenente, o guia e o contra-guia, a mãe-da-tribo, os perós (indiozinhos), o porta estandarte, os caboclos, os caçadores e o pajé. A orquestra é formada pela inúbia (gaita de taquara), os caracaxás, o tarol e o surdo, além das dezenas de preacas que estalam num ritmo frenético (GOÉS, 2002 p. 20).
É nessa virada para o séc. XXI que manifestações como o Maracatu e o Caboclinho se intensificam e ganham popularidade, sendo impulsionados até por novos movimentos culturais urbanos oriundos de Olinda e Recife, como exemplo máximo temos o Manguebeat que teve intensa atuação nas comunidades da periferia da zona norte do Recife, dentre elas a comunidade de Chão de estrelas e Alto José do Pinho.
Nesse território repleto por comunidades conturbadas, é difícil separar dois bairros que estão profundamente e culturalmente ligados: Água-fria e Bomba do hemetério; segundo Halley (2010), Água-fria tem este nome porque havia num lugar próximo ao que hoje corresponde ao seu centro comercial, uma fonte que corria uma água muito fria; já a Bomba do Hemetério teve seu nome de batismo graças a solidariedade de um senhor chamado Hemetério, que tinha uma bomba de água em seu sítio e permitia que as pessoas fizessem uso. Vale salientar que as comunidades periféricas do Recife sofreram com a precariedade e o tardio acesso à água, sendo disponibilizada em chafarizes, de maneira muito escassa; ainda hoje essas comunidades sofrem com o abastecimento de água.
O carnaval é sem dúvidas uma das festas mais tradicionais de nossa cidade, e foi através dele que o Maracatu Nação Raízes de Pai Adão, o Caboclinho Sete Flexas do Recife e uma série de outras agremiações articularam seu calendário de atividades pensando nesse momento como a grande culminância de seus trabalhos. Água-fria e Bomba do Hemetério formam um grande complexo cultural, somados a outras comunidades vizinhas, que contém grande parte das agremiações que desfilam e fazem acontecer o carnaval da cidade. Essas comunidades guardam tradições repletas de musicalidade, plasticidade e memória ancestral, os vínculos criados coletivamente entre agremiações e seus membros só reforçam a capacidade de fortalecimento e transmissão desses sistemas de conhecimentos. Além da relevância simbólica, o carnaval também possui estratégica posição na captação de recursos através das premiações dos concursos, e apresentações com cachês.
Buscando compreender como grupos culturais populares ligados ao carnaval recifense atravessam este difícil período pandêmico iremos, na seção seguinte, nos debruçarmos sobre a vivência dos grupos Maracatu Nação Raízes de Pai Adão e do Caboclinho Sete Flexas nos anos de 2020 e 2021. Pretende-se perceber as dificuldades encontradas para se adaptar a uma nova dinâmica num cenário adverso, com a suspensão do carnaval por tempo indeterminado, a falta de recursos e os protocolos sanitários imprescindíveis para uma possível retomada futura das atividades presenciais.
O Caboclinho Sete Flexas e o Maracatu Nação Raízes de Pai Adão durante a Pandemia de COVID-19
Pai Adão foi o quarto babalorixá do Terreiro Obá Ogunté, a mais antiga casa de culto Nagô de Pernambuco. O maracatu tem Iemanjá como orixá protetora e fica localizado no bairro de Água-Fria, na Zona Norte do Recife (ALVES; SOUZA, 2018). “Tia Inês me dê licença pr’eu entrar no seu reinado/Raízes de Pai Adão recordando o seu passado”. É assim que o Maracatu Nação Raízes de Pai Adão entra na avenida no tradicional cortejo de maracatus no carnaval do Recife. Fundado em 20 de janeiro de 1998 por Inaldo Costa Nascimento, Itaiguara Felipe da Costa e Tomé Gomes da Costa, o Maracatu raízes é uma nação de baque virado, que teve temporariamente sua sede na estrada velha de água-fria, próximo ao Terreiro Obá Ogunté, também conhecido como Sítio de Pai Adão, onde o maracatu teve início (ALVES; SOUZA, 2018).
Já o Caboclinho Sete Flexas do Recife foi fundado em 07 de setembro de 1971, em Alagoas e depois trazido para o Recife, pelo Mestre Zé Alfaiate, após uma promessa feita ao Caboclo Sete Flechas. Atualmente mantém a sua sede na Travessa Dowsley no bairro de água-fria; assim como o Maracatu Nação Raízes de Pai Adão, seus ensaios aconteciam em frente a sua sede, na rua estreita do bairro de água fria, muito próxima a feira e ao mercado, que tem como especialidade artigos de umbanda e candomblé.
Também sediado no bairro de Água Fria, o Caboclinho Sete Flexas começou num terreiro de Umbanda e seu nome é uma reverência ao caboclo 7 Flexas, uma entidade dessa religião. O caboclinho é mantido pela família, sendo Paulinho, filho adotivo do falecido Mestre, o principal membro do grupo atualmente. Conversamos com Íris Campos, membro do caboclinho desde 2006, que assume, no presente, a função de produtora do Sete Flexas junto com sua irmã Iara Campos.
Antes da pandemia do coronavírus as agremiações realizavam atividades que movimentavam a comunidade do entorno de sua sede e até mesmo a cidade de Olinda, como é o caso do maracatu Raízes que ofertava oficinas de percussão no bairro de Jardim Brasil. A rotina de ensaios além de afinar os grupos para o carnaval, beneficiava o comércio informal, como nos conta Íris:
A agremiação movimenta a comunidade com os ensaios na rua, qualquer pessoa da comunidade pode participar dos treinos e sair no carnaval, Mobiliza-se também o comércio ambulante, barraca de bebida, espetinho, etc. que funciona nos arredores do local de ensaio já para captar os participantes do Caboclinho. No Carnaval vai gente de todo o país e depois do ensaio as vezes acontece de rolar festinha (paredão de brega etc.) Já houve projetos do funcultura com a comunidade, onde ensinou-se bordados. (Entrevista concedida por Iris Campos em 27/10/2021)
A partir dos relatos de Íris e Jorge foi possível conhecer um pouco da realidade dos grupos culturais nos anos de 2020 e 2021 durante a pandemia do covid-19. Foi de suma importância buscar informações sobre a atual situação dessas agremiações, tendo em vista que suas atividades foram paralisadas e segundo Jorge Carneiro, Água Fria e bairros vizinhos como Bomba do Hemetério e Alto José do Pinho concentram mais de 60% das agremiações do carnaval do Recife. Constata-se aí o peso que concentra essa região da cidade, por ser parte substancial do nosso carnaval.
Esse período de pandemia tem sido desafiador para todos os setores produtivos, sobretudo para as manifestações da “cultura convivial” (DUBATTI,2020), que dependem do povo na rua, da movimentação na comunidade, do comércio ambulante, da música e da dança - proibidas como norma de segurança sanitária. Tendo as ruas esvaziadas e os brincantes isolados, Íris do Caboclinho Sete Flexas declara: “acredito que toda e qualquer brincadeira que depende, para viver, da rua morreu um pouco”; de forma semelhante Jorge descreve a sensação de angústia e pesar sentida pelos membros do maracatu: “Alguns ficaram mal, muito mal, principalmente perto do carnaval porque esse é um momento especial para eles” e termina contando que mais uma vez presenciou o choro, que não foi de alegria como costumava ser no carnaval, mas de tristeza diante das incertezas que a situação global nos impunha.
As leis de incentivo à cultura têm um papel primordial na manutenção das manifestações artísticas da cultura popular, no entanto ainda há um abismo entre os brincantes populares e o financiamento público, por conta da exigente prática de desenvolver os projetos culturais e as dificuldades de adequar-se às exigências dos editais. “Somos da cultura tratados como empresa, pois nos editais exigem documentação de empresa”, afirma Jorge. Sua agremiação aprovou em 2020 um projeto pelo FUNCULTURA e outro pela Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife. Para a inscrição desses projetos maiores é convidado um produtor cultural cadastrado que não tem vínculo com a agremiação.
Pudemos constatar que o auxílio emergencial da Lei Aldir Blanc não foi uma medida efetiva para as manifestações artísticas da cultura popular da Z/N do Recife. Tanto o caboclinho quanto o maracatu não conseguiram inscrever projetos neste edital por motivos diversos como falta de organização interna, dificuldade no acesso ao edital e demandas de documentação. De maneira geral, os editais de cultura são construídos a partir de um olhar técnico e burocrático, possuindo ainda formatos excludentes para a realidade das manifestações de cultura popular.
Com a suspensão do carnaval de rua em 2021 as agremiações ficaram sem as apresentações desse ciclo festivo. O produto que vendem à prefeitura e ao turismo criativo é a apresentação cultural do maracatu e do caboclinho. Desse modo, o que tem garantido o sustento do Sete Flexas é o subsídio do Estado que este recebe desde 2016, quando foi nomeado Patrimônio Vivo de Pernambuco. O caboclinho foi reconhecido como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), também em 2016, no entanto esse título não agrega verba.
O impacto financeiro que as agremiações sofreram com a pandemia fica evidente, mesmo tendo recebido o auxílio emergencial do carnaval, os representantes entrevistados, Íris e Jorge, afirmam que o recurso recebido não foi suficiente. Tanto o maracatu quanto o caboclinho cessaram suas atividades até então e as ações de “reinvenção” no período pandêmico foram bem pontuais. O Sete Flechas experimentou um novo formato para comemorar o aniversário do caboclinho em 7 de setembro de 2021, com uma live produzida com o apoio de Maria Eugênia do Instituto Brincante de São Paulo. Nessa live foram feitas doações ao caboclinho para uma reforma na sede e manutenção do acervo da agremiação. Um evento tecnovívial que propõe um convívio possível (DUBATTI, 2020).
Além do impacto financeiro houve também o impacto social, quando os participantes dos brinquedos não puderam mais compartilhar do mesmo espaço. Não teve música, não teve dança, não teve público, nem turistas, nem vendedores ambulantes, nem movimentação no bairro. Muitas pessoas da comunidade passaram por necessidades - e ainda passam - tanto o maracatu quanto o caboclinho arrecadaram dinheiro e alimentos para fornecer cestas básicas aos participantes e moradores. Íris do Caboclinho Sete Flexas afirma que a distância durante os últimos anos gerou uma maior solidariedade entre os integrantes, uma necessidade maior de comunhão.
A partir do relato dos entrevistados pudemos perceber que ambos os grupos pesquisados precisaram fazer um investimento na virtualização da agremiação, ampliando o alcance das suas redes sociais para promover lives e divulgação. Alimentar as redes das agremiações é fundamental, visto que com o maior número de seguidores e inscritos se amplia a comunicação, ação indispensável para ter um maior alcance nas lives de arrecadação. Pois, a rede de solidariedade que se formou na comunidade durante o período de pandemia do covid-19 foi o grande ganho para as agremiações. Os sujeitos envolvidos nos brinquedos populares trazem como legado a tradição da cooperação, já que desde suas origens as danças dramáticas são produto do coletivo. Mário de Andrade, estudioso da cultura popular brasileira faz um mapeamento das danças dramáticas no Brasil e traz como fator aglutinador o bailado coletivo.
Reúno sob o nome genérico de “danças dramáticas” não só os bailados que desenvolvem uma ação dramática propriamente dita, como também os bailados coletivos que, junto com obedecerem a um tema dado tradicional e caracterizador, respeitam o princípio formal da Suíte, isto é, obra musical constituída pela seriação de várias peças coreográficas. (ANDRADE, 1982, p. 71).
As duas agremiações tiveram algumas vivências similares e outras distintas durante o período pandêmico. O Maracatu Nação Raízes de Pai Adão não promoveu nem participou de lives, mas conseguiu aprovar dois projetos em 2020, um pelo Estado de Pernambuco e outro pela Prefeitura do Recife, nenhum deles através da Lei Aldir Blanc. Já o Caboclinho Sete Flexas realizou e participou de lives, ainda que poucas, mas não aplicou nem aprovou projetos nos anos de 2020 e 2021. Os pontos onde as agremiações se encontram é no crescimento perceptível da solidariedade entre os seus e a comunidade, como também a necessidade de se virtualizar cada vez mais, visto que a chegada da cultura convivial no universo tecnovivial é um caminho sem volta (DUBATTI, 2020).
Considerações Finais
A partir das referências bibliográficas e das entrevistas realizadas com integrantes de ambos os grupos, Caboclinho Sete Flexas e Maracatu Nação Raízes de Pai Adão, percebemos que os dois coletivos tiveram experiências parecidas durante o período pandêmico. Os dois grupos precisaram interromper totalmente as suas atividades durante os anos de 2020 e 2021 e até então não retomaram seus encontros presenciais nem suas rotinas de ensaios. Pode-se notar que projetos de incentivo à cultura foram de grande importância para a continuidade destes grupos - como o título de Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, obtido pelo Caboclinho Sete Flexas ou o Auxílio Carnaval recebido pelo Maracatu Nação Raízes de Pai Adão e ainda as aprovações em editais.
Outro aspecto curioso foi em relação a internet, que durante o período de isolamento social se tornou um amplo canal para que artistas e grupos reelaborassem suas atividades, realidade essa que não foi vivenciada da mesma maneira pelas agremiações, que pouco se utilizaram das redes sociais das agremiações durante os quase dois anos de pandemia; poucas lives foram realizadas, um número ínfimo se comparado a explosão de lives que vimos durante a quarentena.
O grande fato a se destacar nos casos analisados foi a criação e o fortalecimento de uma rede de apoio formada pelos próprios pares. Ambos os representantes dos dois grupos apontam que esse fortalecimento se deu graças aos vínculos criados coletivamente, sendo comum até a participação dos entrevistados em agremiações vizinhas, oferecendo apoio para superar as adversidades burocráticas e financeiras que se apresentam. De extrema importância para ambos os grupos foi o esforço interno de adquirir renda durante a pandemia, utilizando este dinheiro para a compra de alimento e material de limpeza para os integrantes que passaram por grandes dificuldades neste período. O diálogo com a prefeitura do Recife e a Secretaria de Turismo também foi mencionado como uma parceria que proporcionou impactos positivos e significativos para as agremiações do bairro.
Referências
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