RETORNO DO BRASIL AO MAPA DA FOME: MOVIMENTOS DE SOLIDARIEDADE ATIVA E A FOME EM RECIFE
- Adriana Albuquerque
- 1 de dez. de 2021
- 10 min de leitura
Adilson Monteiro Ribeiro
Adriana de Souza Albuquerque
Hugo Rafael Rocha Carneiro
Maria Jaciara dos Santos Silva
No campo das lutas sociais há uma variedade de questionamentos a serem enfrentados por aquelas pessoas ou grupos que buscam no seu cotidiano construir nas sociedades contemporâneas espaços libertários, igualitários e fraternários. A fome é um fenômeno preocupante na humanidade e está atingindo o mundo há muito tempo. A desigualdade entre as pessoas vem aumentando cada vez mais, ou seja, uma pequena parcela da sociedade enriquece às custas do empobrecimento de uma porção cada vez maior, acarretando, paralelamente, o agravamento do quadro da fome.
O artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas estabelece que a alimentação é um direito da humanidade de viver em um quadro de segurança alimentar, traçando um ponto de partida para discutir outros direitos. O conceito de fome apontado por Josué de Castro (1946) despreza o fator biológico como determinante, diz que a fome é produzida socialmente, sendo assim, político e cultural. Este fenômeno por ser social é coletivo.
Segundo Mercês Santos (2016), Josué de Castro desenhou contextos significativos para compreender a problemática da fome, apontando sua relação multicausal. A autora ainda demonstra a complexidade do fenômeno da fome na dinâmica social, não se constituindo uma tarefa fácil, no plano político, do confronto de ideias e de interesses, sendo necessária a adoção de instrumentos, recursos e agentes especializados para se pensar em estratégias da fome.
Santos (2016), aponta três pontos importantíssimos na atualidade para compreensão da problemática: Direito Humano à alimentação adequada, Segurança Alimentar e Nutricional, e Soberania alimentar. Castro (1946), aponta o problema universalmente, alertando a gravidade e complexidade do problema, já havia nos aludido que a principal estratégia seria não tratar o fenômeno da fome isoladamente com técnicas e análises fragmentadoras da realidade.
Dessa forma, fome, pobreza e desnutrição não podem ser verificadas apenas na dimensão econômica (renda), na dimensão alimentar (disponibilidade de alimentos) ou na dimensão biológica (estado nutricional). São áreas inseparáveis, conforme assinala Monteiro (2003):
1) Indivíduos podem ser pobres sem necessariamente ser afetado pela fome (fome de alimentos), mas ser afetado por falta de estrutura social adequada (saneamento básico, educação, transporte, etc.);
2) há ocorrência de fome na ausência de pobreza (em casos desastres naturais, guerras e outros);
3) A fome causa algum tipo de desnutrição, mas nem toda deficiência nutricional se origina da fome (falta de alimentos), mas em associação ou não com outros fatores.
Nesse sentido, com base na geografia da fome no Brasil de Josué de Castro (1946) que aponta que um dos maiores erros da nossa civilização, é deixar centenas de milhões de pessoas morrendo de fome em um mundo com capacidade infinita de alimentos. Se temos meios para ajudar, por que não fazemos?

Com esta pesquisa, inserida na linha Movimentos Sociais, Práticas educativo-culturais e identidades do Programa de Pós-Graduação em Educação, Culturas e Identidades – UFRPE/FUNDAJ, pretendemos analisar, na perspectiva da pesquisa participativa, o retorno do Brasil ao mapa da fome e como o Coletivo Unificados (@unificadospsr) tem atuado com ações de solidariedade ativa para o auxílio da amenização da situação de vulnerabilidade de pessoas em situação de rua no período de pandemia provocada pelo SARS-COV 2 (COVID-19).
Tal pobreza bibliográfica se apresenta ainda mais estranha e mais chocante quando meditamos acerca do conteúdo do tema da fome – de sua transcendental importância e de sua categórica finalidade orgânica. Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos?
Existe um silêncio premeditado para representantes políticos e a sociedade brasileira de falar sobre a miséria, que prefere ocultar os problemas existentes. No prefacio de sua primeira edição da Geografia da Fome, Castro (1946), aponta que fome é um assunto bastante delicado e perigoso, que transforma um tabu para nossa civilização. Os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica na nossa chamada Civilização Ocidental que tornaram a fome um tema proibido ou, pelo menos, pouco aconselhável a ser abordado publicamente.
Castro (1946), nos ensina que o fundamento moral que deu origem a esta espécie de interdição baseia-se no fato de que o fenômeno da fome, tanto a fome de alimentos, como a fome sexual, é um instinto primário e por isso um tanto chocante para uma cultura racionalista como a nossa, que procura por todos os meios impor o predomínio da razão sobre o dos instintos na conduta humana. Ele ainda denuncia que:
É realmente estranho, chocante, mesmo a observação, o fato de que, num mundo como o nosso, caracterizado por excessiva capacidade de se escrever e de se publicar, haja até hoje tão pouca coisa escrita acerca do fenômeno da fome, em sua diferente manifestação. (1946)
A noção que se tem, corretamente, do que seja fome é, assim, uma noção bem incompleta. É esse desconhecimento por parte das elites europeias, da realidade social da fome, no mundo e dos perigos que este fenômeno representa para sua estabilidade social, constitui uma grave lacuna tanto para a análise dos acontecimentos políticos da atualidade, que se reproduzem em diversas regiões da terra.
Santos (2016) apresenta um dado importante sobre a fome está inserida na proposta de governo no Brasil, houve dois momentos significativos em que a pauta da fome participou da agenda política do país. O primeiro foi quando o presidente Getúlio Vargas na época de 30 convidou Josué de Castro a coordenar o Serviço de Alimentação e Previdência Social- SAPS; construiu um planejamento para trabalhadores de fábricas orientando sobre o reaproveitamento das cascas de frutas; criação de restaurantes populares e distribuição de cesta básicas. O segundo momento foi a criação do fome zero no governo de Luís Inácio Lula da Silva, uma política de apoio à agricultura familiar, o direito à Previdência Social, o direito à complementação de renda, a ampliação da merenda escolar e o apoio a programas criados por governos estaduais, municipais e pela sociedade civil organizada. Antes de Lula tivemos algumas ações isoladas, mas não como projeto político de nação.
Ao visitar as obras do mestre Josué de Castro, somos estimulados à busca entender o desprezo às vidas da maioria dos brasileiros, pelo governo federal em exercício, ao desmantelar no início do seu mandato programas que mantinham o Brasil fora do Mapa da Fome, segundo a FAO, como: extinção do CONSEA, Conselho Nacional de Segurança Alimentar, responsável pelo controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de Segurança Alimentar e nutricional. Atitudes como esta mostra a verdadeira face do projeto neoliberal implantado no nosso país a partir de 2018, prejudicando milhares de trabalhadoras e trabalhadores, que tinham na agricultura familiar, o sustento e outros milhares de pessoas que tinham, na agricultura familiar, a possibilidade de ingerir alimentos frescos e saudáveis.
Foi a partir desse referencial teórico que buscamos enfrentar a problemática das populações na periferia do Recife, em decorrência da pandemia provocada pelo SARS-COV2 (COVID-19) e do descaso do governo federal, voltarem a vivenciar a insegurança alimentar no seu cotidiano. Emergiu o seguinte questionamento: os movimentos de solidariedade ativa contribuíram para amenizar a fome de pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social e econômica durante a pandemia provocada pelo SARS-COV 2 (COVID-19)?
Nosso objetivo geral foi o de verificar se a insegurança alimentar, vivenciada por populações no entorno da cidade do Recife, está sendo acompanhada pelo Movimento Unificados e quais ações estão sendo implementadas no sentido de auxiliar a amenizar esta realidade.
Seguindo nossos objetivos específicos, coletamos dados por meio de sites de busca, revistas digitais e plataformas de jornalismo independentes sobre a volta do Brasil ao mapa da fome, presenciamos ações do UnificadosPSR, por meio de visitas de campo, verificamos, por meio da aplicação de questionários e conversas, como movimentos de solidariedade ativa atuaram no entorno da cidade do Recife com a temática da insegurança alimentar vivenciada pela população na pandemia, coletamos informações, por meio de e conversas com agentes das comunidades contempladas pelo UnificadosPSR acerca da realização das ações e seus impactos para a população e, por fim, realizamos um levantamento do perfil dos principais sujeitos afetados com a situação de fome entrecruzada com a pandemia, observando marcadores de exclusão interseccionalizados, tais como: gênero, raça, sexualidade e geração.
CAMINHOS METODOLÓGICOS
Considerando o conteúdo programático da disciplina e, em consonância com as metodologias e técnicas de pesquisa apresentadas, desenvolvemos a pesquisa conforme as diretrizes da pesquisa participante, que de acordo com Minayo (1994) se realiza por meio do contato direto do pesquisador com o fenômeno para obter informações sobre a realidade de atores sociais em seus próprios contextos.
Em relação à análise dos materiais coletados utilizaremos a perspectiva qualitativa, com supedâneo nas reflexões de Marli André (2013). Para ela, a abordagem qualitativa de pesquisa se fundamenta “numa perspectiva que concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados” (ANDRÉ, 2013 p. 97).
Sobre as técnicas de pesquisa, realizamos visitas em campo, que despontaram como uma das principais fontes de levantamento de informações. Além disso, fizemos uso de questionários digitais e pesquisas em sites de buscas na internet. Devido à pandemia e às medidas de isolamento e distanciamento social, foram tomados todos os cuidados necessários, atendendo aos protocolos exigidos, não abrindo mão, porém, da técnica da conversa com os sujeitos participantes da pesquisa que encontramos disponíveis, sendo eles(as) tanto os(as) principais representantes das ações do movimento solidário escolhido, como também com as pessoas em situação de vulnerabilidade que são contempladas com tais diligências, compreendendo a importância de cada sujeito como um sujeito político, filho(a) de seu tempo, e perpassado pelas interseccionalidades, assim como bem salienta Akotirene (2019).
EXPERIÊNCIA EM CAMPO
Acompanhamos as atividades diurnas do UnificadosPSR no antigo Liceu de Artes e Ofícios do Recife, em todas as quintas-feiras do mês de outubro de 2021, das 7h às 12h.
Assim, ao chegarmos às 7h da manhã, auxiliamos na produção de kits de alimentos, composto por dois pães com algum tipo de recheio, uma garrafa de 500ml de água e um copo de 250ml de leite ou achocolatado. Às 8h da manhã, pouco mais de setenta kits como esses são distribuídos na frente do Liceu, infelizmente, ainda assim, algumas pessoas em situação de rua acabam não conseguindo ter acesso ao alimento, já que o número de pessoas é superior ao número de kits.
As pessoas em situação de rua começam a chegar ao Liceu durante a madrugada, e se organizam por ordem de chegada para poder entrar no prédio e receber um kit para banho composto por escova de dentes descartável, pasta dental, shampoo, condicionador, creme para cabelo, sabonete, desodorante, uma toalha e, se necessário, absorventes. Tudo isso é entregue para ser utilizado durante o banho que acontece no prédio, seguindo a lista de ordem de chegada de quarenta vagas, logo após a entrega do kit alimentação.
O Liceu possui dois banheiros, com dois chuveiros cada, e durante o período do banho os voluntários e voluntárias organizam a chamada, entrega de kits de banho, devolução de toalhas e, caso necessário, alguma outra demanda específica de cada pessoa atendida.
Após os banhos, as toalhas recolhidas são colocadas em máquinas de lavar e quando concluída a lavagem, colocadas na secadora, para depois serem dobradas e guardadas.
Todos os processos descritos são feitos por voluntários e voluntárias, exceto pela abertura dos portões e limpeza do ambiente, que é feito por funcionários e funcionárias do prédio, que ainda assim ajudam nas atividades voluntárias para além de suas funções monetarizadas. Tanto o prédio quanto os funcionários são disponibilizados pela Universidade Católica de Pernambuco, que custeia também as contas de água e energia elétrica.
De quinze em quinze dias, além do kit alimento e kit para banho, cada pessoa assistida pelo Unificados recebe um kit de higiene com: escova de dentes, aparelho de barbear descartável, sabonete, pasta dental, uma barra de sabão e para as pessoas que menstruam é acrescentado um pacote de absorventes.
Atualmente, essas atividades acontecem todas às terças, quintas e sábados. No sábado, além da entrega dos kits e do acesso ao banho, cada pessoa pode escolher um conjunto de roupas no chamado “Bazar”, um espaço onde as roupas que são recebidas das doações são organizadas após a limpeza das mesmas, e disponibilizadas para serem escolhidas pelas pessoas assistidas pelo Unificados.
Embora não tenhamos acompanhado outras ações, a partir de conversas com pessoas assistidas e voluntários(as), podemos citar alguns outros trabalhos do coletivo:
Em parceria com os Samaritanos, são feitas assistência jurídica, assistência médica, e entregas de algumas cestas básicas.
Em parceria com mais de 50 coletivos, entrega de marmitas e água no período noturno, de segunda à sexta, nas chamadas “Rondas”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos anos finais de setenta, década de oitenta, noventa participamos de movimentos em defesa: de liberdades (de expressão, circulação, pensamento e reunião), de transformações das associações em sindicatos, por Escolas Públicas de qualidade e em quantidade suficiente para atender as necessidades dos filhos das classes mais desprotegidas na sociedade e um dos resultados de todas as lutas foi a construção da Constituição de 1988, considerada a Constituição Cidadã. E hoje, estamos experimentando momentos de difícil compreensão, como as ações de uma parcela da sociedade política e civil, que extrapolam os limites da convivência nos campos político, social e econômico, questionando e boicotando com suas práticas os avanços conquistados até então. Também nos deparamos com a execução de planos de intervenção do Estado que destroem os avanços conquistados pela sociedade civil e política organizada, conquistas estas que foram trilhadas por décadas e que levaram décadas para serem atingidas.
Uma de nossas interpretações da situação atual dos movimentos sociais é a de que a mudança de foco de atuação das vanguardas desses movimentos, passando a priorizar a lutas nos campos institucionais - parlamentos, governos em suas diversas esferas - deixaram os movimentos populares e sindicais em segundo plano, tendo como consequência, a perda da hegemonia nos campos das lutas que possibilitaram avanços no pós 1964.
Faz-se necessária a compreensão acerca dos novos movimentos de direita que estão em busca de se firmar com o advento da internet e voltarmos com pragmatismo necessário para fortalecer os movimentos populares e sindicais, em todos os espaços que no passado recente contribuíram para que brasileiras e brasileiros, do quilate de Margarida Alves, Rachel de Queiroz, Josué de Castro, e Paulo Freire, surjam para construir alternativas que apontem para uma sociedade livre, fraterna e com igualdade entre brasileiras e brasileiros, quiçá entre os povos do mundo. Precisamos construir caminhos que apontem para surgimento de novas relações mais humanas os nossos lares, ambientes de trabalho e na sociedade com um todo.
Dessa forma, o movimento social de solidariedade ativa conhecido pelo nome UnificadosPSR, teve uma atuação diligente e de relevante valor social durante a situação pandêmica que vivenciamos e que ainda estamos enfrentando. Suas diversificadas ações e estratégias não são, evidentemente, suficientes para aplacar a situação municipal de vulnerabilidade alimentar, mas é, indubitavelmente, salutar. Até o fechamento de nossa pesquisa, aguardamos o envio de dados quantitativos acerca da distribuição de alimentos em diversificadas ações por parte da coordenação do UnificadosPSR, mas devido à forte mobilização e quantidade de demandas existentes dentro do coletivo e também em outros movimentos dos quais as pessoas integrantes da coordenação fazem parte, não foi possível a coleta desses dados. Consideramos relevante para a pesquisa o registro desse evento.
REFERÊNCIAS
ANDRÉ, Marli. O que é um estudo de caso qualitativo em educação? Revista da FAEEBA - Educação e Contemporaneidade, v. 22, n. 40, p. 95-103, 16 out. 2019.
CASTRO, Josué. Geografia da Fome. O Dilema Brasileiro: Pão ou Aço. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1946.
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidades. São Paulo: Pólen, 2019.
EGGERT, Edla. Pesquisa em educação, movimentos sociais e colonialidade: continuando um debate. Educação e. Pesquisa, v. 42, n. 1, p. 15-26, 2016.
MINAYO, Maria Cecília. O desafio do conhecimento. São Paulo: HUCITEC-ABRASCO, 1994.
MONTEIRO, Carlos Augusto. A dimensão da pobreza, da desnutrição e da fome no Brasil. In: Estudos Avançados, São Paulo, v.17, n. 48 , 2003.
SILVA, Mercês de Fátima dos Santos. Josué de Castro: um autor do legado esquecido. 2016. 1 recurso online (257 p.). Tese (doutorado) ¿ Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP. Disponível em: <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/312622>. Acesso em: 10 nov. 2021.
STRECK, D.; ADAMS, T. Pesquisa em educação: os movimentos sociais e a reconstrução epistemológica num contexto de colonialidade, Educação e Pesquisa, v. 38, n. 1, p. 243-257, 2012.
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