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Educação (escolar) indígena: saberes, direitos e tradições.

Em busca de compreender os fundamentos, desafios e as relações entre discursos e práticas dos sujeitos educativos do movimento indígena sobre a educação escolar indígena, xs pesquisadorxs, Nivaldo Léo Neto e Lilian Sampaio de Barros, realizaram uma pesquisa com base em entrevistas narrativas.

A primeira entrevistada foi a quilombola-indígena Alecksandra Ana dos Santos Sá, 36 anos, pedagoga, mãe de duas meninas e um menino, moradora do quilombo-indígena Tiririca dos Crioulos, coordenadora local da ação de Educação Patrimonial “Do Buraco ao Mundo”, presidenta da Associação dos Remanescentes do Quilombo Tiririca (AREQUITI) e educadora de apoio do Núcleo 6 das Escolas Indígenas Pankará.

O segundo entrevistado foi o educador José Lopes Cunha Júnior, formado em Geografia, vivenciou um período de alguns meses nas terras aldeia Karajá Erehawã Marrandu (Aldeia do Martin Pescador), no município de Luciara, Nordeste do Mato Grosso, por isso é chamado de “Karajá”. Nos anos de 1983 e 1989 participou do Conselho Indigenista Missionário do Nordeste (CIMI) que tem como princípios a opção e o compromisso com a causa indígena, o respeito a alteridade em sua pluralidade, a valorização dos conhecimentos tradicionais e o protagonismo dos povos indígenas.

Como o método utilizado foi a História Oral, as narrativas constituiram-se na principal fonte de dados. Neste post trazemos alguns extratos retirados do relatório da pesquisa realizada no âmbito da disciplina Movimentos sociais, Identidades e Cidadanias Interculturais, do PPGECI, em 2017.


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Frente da Escola Manuel Miguel do Nascimento. Tiririca dos Crioulos Foto: Nivaldo Léo Neto.


Localizado no município de Carnaubeira da Penha, a mais de 500 km, de Recife, a entrevista com Alecksandra Sá, do Quilombo-Indígena Tiririca dos Crioulos, ocorreu por telefone, tendo o áudio gravado, e foi facilitada pelo longa convivência dela com o pesquisador Nivaldo Leo, conhecimento também como Caju, cuja relação com a comunidade vinha ocorrendo há mais de 3 anos em virtude do projeto "Do Buraco ao Mundo", focado em educação ambiental e patrimonial.

O discurso de Alecksandra sobre a educação indígena parte de uma concepção bem ampla sobre esta: "Educação são coisas que a gente aprende no dia-a-dia. É tudo que a gente vem aprendendo, que faz bem pra gente, que são aprendizagens diferentes, pra mim é Educação. São formas de tratamento, de respeito as pessoas, respeito aos mais velhos, respeito as religiões, respeito ao modo de ser de cada um. Pra mim isso é educação" (entrevista realizada em 19 de setembro de 2017).

Contudo, quando questionada se já tinha participado de algum evento sobre educação (escolar) quilombola, Alecksandra responde negativamente, informando, todavia, que sempre participava de alguns eventos realizados no quilombo de Conceição das Crioulas (município de Salgueiro, Estado de Peranmbuco). Mas para a referida interlocutora, esses momentos em Conceição das Crioulas se voltariam mais para a cultura da comunidade, as danças e outras manifestações. Confrontamos essa sua percepção sobre o formato desses eventos ao fato de que no início da entrevista ela afirmou seu entendimento sobre educação como aquilo que se aprende no “cotidiano”.

Da mesma forma que na Tiririca dos Crioulos ocorrem as apresentações culturais (Toré, Dança do Cordão, etc) associadas à Educação, em Conceição das Crioulas isso também não poderia ocorrer? Tais momentos também não poderiam ser considerados como uma proposta de educação? Alecksandra responde afirmativamente, reavaliando sua fala inicial.

A Tiririca dos Crioulos é uma coletividade que atualmente ressignifica e reelabora a sua condição enquanto comunidade negra com uma estreita relação de parentesco com povos indígenas da região, especialmente os Pankará da Serra do Arapuá. Se inserem em um campo político no qual a ordem discursiva atenta para o auto-reconhecimento como um quilombo-indígena. Dessa forma, a comunidade acessa a sua delimitação territorial via INCRA e o sistema educacional via povo Pankará.

Essa associação política entre as coletividades (Tiririca e Pankará) é resguardada, como dito anteriormente, por históricas relações de parentesco. No território da comunidade encontramos uma pequena escola local (Figura 1), vizinha a chamada Casa-Grande, um importante lugar de memória para a Tiririca dos Crioulos.

A memória da educação escolar em Tiririca dos Crioulos, na narrativa de Alecksandra, remete a três momentos significativos nessa construção: nos anos de 1950, com o indígena Pankará conhecido como Mané Miguel (Manuel Miguel do Nascimento), considerado o primeiro professor da comunidade, e, décadas depois, nos anos 1990, um segundo momento vivido a partir de uma filha deste primeiro,m Verinha de Mané Miguel (Dalva Lúcia do Nascimento), assumindo a escola da comunidade. O terceiro momento inicia-se em 2010, com a construção de uma aliança com o povo indígena Pankará, possibilitando a conquista da autonomia na gestão da escola, reconhecida como indígena: quando "[...] nós começamos...foi quando nos juntamos com o povo Pankará. Porque nessa época, educação do município não tava mais agradando a gente. Então, houve a necessidade, então nós tivemos um convite do povo Pankará, pra trabalhar juntos e daí nós começamos, juntamos e ficamos trabalhando a educação aqui quilombola com o povo indígena. Que até hoje existe. [...]".

Algo que o Movimento Indígena proporcionou à Tiririca dos Crioulos foi a sensação de que estavam juntos e mobilizados em prol de uma luta em comum. Essa luta, conforme veremos posteriormente, envolve um projeto de vida comunitário e que para se poder alcança-lo, algumas barreiras (como a violência epistêmica e racial) devem ser ultrapassadas e enfrentadas, construindo o sentimento de apoio, conforme narrado por Alecksadra: "O movimento indígena foi o início da...foi o início pra gente....assim, uma coisa que deu força pra gente. Foi o início de tudo. A gente tava precisando desse momento e depois disso, a gente, depois que nós começamos a nos sentir assim...como é que eu posso dizer....que a gente tinha um apoio, que a gente podia contar nossa história, a gente podia ir mais além" (entrevista realizada em 19 de setembro de 2017).

Um ponto a ser destacado do discurso de Alecksandra, em termos teóricos, é uma construção da (de)colonialidade. Quando questionada o porquê de a educação do município não ter agradado à Tiririca dos Crioulos (conforme trecho de depoimento anteriormente destacado), a resposta foi reveladora:


"[...] a gente não podia falar o que a gente fala hoje. A gente não podia mostrar a nossa história que hoje a gente tem orgulho de falar. Que naquela época que a gente fosse fazer tudo o que a gente faz hoje, a gente era ignorado né? Sofria muito preconceito e até as pessoas da comunidade tinha medo de dizer que....se fosse naquela época não ia falar que era quilombola. Mesmo eles sabendo que aqui tinha uma cultura negra, mas as próprias pessoas não falava que era negro, porque tinha medo do preconceito, tinha medo da forma que seria tratado por outras pessoas lá fora. Então por isso. Mudou muito. Se fosse como na época que a gente era do município, provavelmente a gente não estaria com esses projetos todos também, né?" (entrevista realizada em 19 de setembro de 2017).

A possibilidade de se fazer uma Educação da forma que a comunidade almeja, respeitando os seus processos específicos de ensino-aprendizagem chegou com a articulação política com o Povo Pankará.


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Porta-canetas produzido pelo professor de Artes da escola. Foto: Nivaldo Léo Neto.


Essa perspectiva de Educação enquanto “projeto de vida” se volta para a realidade local, buscando a escuta dos saberes e memórias locais. Provavelmente por isso a adoção de materiais didáticos produzidos hegemonicamente e distribuídos para essas comunidades pode passar por um processo de reavaliação interno, a exemplo dos livros didáticos, conforme depoimento a seguir:

"A educação escolar aqui na comunidade ela funciona assim, porque a gente não usa só o livro didático mesmo, aquele livro didático pra trabalhar. A gente aproveita as histórias que o povo conta e trabalha em sala de aula. Aproveita textinho o pessoal falando....por exemplo, a história do doce, né? Do doce eu posso trabalhar quem faz o doce. Que geralmente, por exemplo, Celina que é uma liderança, pessoa que trabalha com a arte, trabalha com o doce. Daí eu posso aproveitar a leitura, criar um textinho, posso também usar a matemática...é isso.

[...] mas a gente sempre pensa assim, de preparar os nossos alunos pensando que ele pode conhecer as histórias do nosso povo e também que eles possam conhecer lá fora, pra que quando eles sair, eles não tenha dificuldade. Por exemplo, pra fazer a prova do ENEM, pra fazer outras coisas, vestibular, então a gente trabalha o nosso, tudo o que a gente tem na comunidade e também trabalhamos assim, de uma forma que a gente prepare eles também pra enfrentar o mundo lá fora. O mundo do outro também, não só esse nosso mundo aqui. O conhecer a história também de outras pessoas que não seja também nós quilombolas, nós aqui pessoas indígenas, outras pessoas também. (entrevista realizada em 19 de setembro de 2017).

Percebemos, então, o caráter de formação de pessoas, a partir da educação escolar indígena, em uma perspectiva intercultural. A formação de “guerreiros” e “guerreiras”, desse modo, busca, através dos conhecimentos e outras epistemologias, a conquista de direitos que lhes são garantidos. Portanto, entre tantos desafios inerentes às práticas pedagógicas e às abordagens interculturais, o estabelecimento dessas pontes e vínculos de pertencimento com a memória local também envolve o olhar para o “mundo” que não seja somente o da comunidade.


A entrevista com José Lopes Cunha Junior, conhecido por Karajá, alcunha que ganhou devido ao longo tempo em que viveu entre esse povo, foi realizada no jardim do Campus Anisio Teixeira, da Fundação Joaquim Nabuco, em Apipucos. Karajá é mestre em Educação, Cultura e Identidades, da primeira turma formada no PPGECI, e sua dissertação é um estudo sobre a educação escolar indígena em Pernambuco. Como educador, Karajá conviveu por longos anos em terras indígenas, vivenciando a rotina desses povos e suas necessidades. Hoje atua como consultor no CIMI (Conselho Indigenista Missionário), uma entidade criada em 1972 a partir da atuação da Pastoral Indígena, que é vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, mantendo uma atuação identificada com a ala progressista da Igreja Católica, adotando alguns princípios da Educação Popular

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Uma questão importante suscitada por Karajá está relacionada à discussão da colonialidade de nossas instituições e pensamentos, evocando os estudos pós-coloniais e decoloniais que vem sendo abordados por alberto Quijano, Walter Mignolo, Catherine Walsh e José Jorge de Carvalho, entre outros autores e autoras, problematizando o eurocentrismo predominante em nossa sociedade. Karajá afirma que a interferência do colonizador e do modelo trazido por ele, interferiu na educação indígena, compreendida aqui como a educação tradicional desses povos, como exemplificado no trecho de entrevista a seguir: “[o] impacto desse modelo de escola para populações indígenas é muito mais nefasto, e sempre foi”.

Ressalta que os modelos nos quais as escolas foram planejadas não promovem a reflexão do educando junto a sua prática de vida e, consequentemente, situam-se dentro de uma perpectiva assimilacionista, passiva e submissa, que é o que se entende por colonialidade do saber. Em trecho de entrevista a seguir, observamos algumas percepções sobre esse fator:

Como a escola tem sido historicamente, a escola pública oferecida pelo Estado, há um espaço de reprodução de mecanismos de dominação, de subordinação, de subjetivações. [...] E essa escola só faz acentuar a prática de subserviência e de clientelismo que foi imposta para índios, negros e mestiços, para populações subalternas... (entrevista realizada em 20 de setembro de 2017).

Essa escola oficial, do Estado, impõe a língua portuguesa, a escrita e vocabulário para os indígenas:

"E o letramento, fundamentalmente a escrita, foi muito imposta para os índios... porque os índios são ágrafos, eles tem símbolos mas não uma escrita formal como a gente diz... com vocabulário extenso, com termos extensos, etc. Mas o suficiente para eles se comunicarem entre eles não é? Me lembro que os Karajá contavam até dez, depois era dez e uma mão, dez e duas mãos, eles não tem grandes números, eles não pescam mais do que vinte peixes num dia, não derrubam mais que três ou quarto árvores por ano, então eles não precisavam desse numero todo, [enquanto que] as sociedades chamadas de capitalistas, não mais mercantilistas, já lidavam com milhões, com centenas de milhares, coisas desse tipo né. E ai, a educação de qualidade etc, é uma educação que serve para um determinado povo, um determinado espaço e um determinado tempo histórico (entrevista realizada com José Lopes da Cunha Júnior, “Karajá”, em 20 de setembro de 2017).


É por este quadro, afirma Karaja, que é importante valorizar as estratégias de retomada das escolas como um movimento político dos povos indígenas, pela recuperação do espaço de ensino em seus territórios:


"retomada das escolas, assim como foi a retomada de territórios, é uma atitude política, uma atitude política dos índios, e uma atitude política dos professores"


É assim que a Educação Escolar Indígena deve ser construída, pelos próprios indígenas, a partir de suas culturas e suas necessidades:

"Então os índios vão construir a educação deles nesse momento, a partir deles e do que eles precisam pra conseguir essa autonomia, pra firmar essa autonomia, e ao mesmo tempo pra levar ele nessa direção do bem viver, não é? O projeto de vida deles é satisfatório para eles, que é um projeto [...] e é um processo dialógico com o Estado brasileiro permanente, e ainda é um campo de disputa, tanto na saúde, quanto na educação, tanto na produção, é ainda um processo inacabado."


E é nesse contexto que é preciso voltar à questão da discussão entre o que é educação indígena e o que é educação escolar indígena: quais são os lugares do aprendizado do ser indígena? Quais são os tempos da aprendizagem? Quais são as formas de aprender? Quais são os sujeitos que ensinam? O papel dos ensinamentos que são passados através dos mais velhos, dos tutores, dos mestres são primordiais:


Então esse educar, essa escola, essa educação escolar indígena, ela é movida pra preparar os guerreiros para um diálogo com o Estado brasileiro né. O educar indígena, o educar da tradição, o educar dos usos e costumes, o educar da ancestralidade não é na escola, é em outro canto, não é? (entrevista realizada em 20 de setembro de 2017).

Considerações finais

O que pode ser ressaltado em relação as duas narrativas é a necessidade de uma educação construída pelos povos indígenas e que atualmente encontra dissonâncias com a que é ofertada pelo Estado brasileiro, uma Educação Escolar Indígena que apesar de existir na normativa não vem proporcionando a interculturalidade.

Os movimentos indígenas vêm galgando e lutando pelas modificações dessa modalidade de educação e a retomada das escolas é claramente uma atitude de enfrentamento político, de assunção de suas identidades, de demonstração de suas culturas, o que Gohn (2008) traz como conceito de movimento social.

A emergência e os processos de reivindicação das coletividades por políticas de reconhecimento e de redistribuição, situadas em um campo político, implicam a relação de forças entre os atores sociais e o Estado. Socialmente organizadas, essas coletividades pautam suas especificidades em relação aos sistemas educacionais, demonstrando a necessidade de uma interação entre o que é percebido como “cultura” e “educação”. Ao dizer isto, nos referimos à busca por uma educação que seja construída não “para” os indígenas, mas “com” os indígenas. Assumir essa perspectiva, para a criação de políticas públicas, implica necessariamente a construção de canais de diálogo pelos quais os grupos étnicos seriam reconhecidos em suas diversidades.

Apesar do Estado criar uma narrativa na qual busca repassar uma imagem de que através de suas ações consegue compreender a diversidade étnica, nas entrevistas dos interlocutores dessa pesquisa essa verdade não se concretiza. As instituições do Estado ainda se guiam por uma percepção homogênea do ser indígena, instrumentalizando os direitos por políticas que contemplam a educação, saúde e delimitação territorial, por exemplo. Sobre essa última, inclusive, pelas próprias narrativas dos interlocutores dessa pesquisa, não há como pensar educação escolar indígena específica se não houver também a garantia das terras tradicionalmente ocupadas, implicando a desintrusão, delimitação e homologação das terras indígenas.

Na perspectiva da educação, Gohn (2008) descreve algumas lutas que podem ser identificada nas falas de Karajá como: gestão democrática, lutas contra discriminação, ensino de qualidade para atender às necessidade de múltiplas demonstrações de contextos educativos (GOHN, 2008). A luta dos movimentos indígenas pela garantia de sua educação específica carrega em seu arcabouço outras reivindicações não menos importantes, mas emaranhadas em suas linhas de ação.


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